quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A SÚMULA 394 DO STF E A LEI N° 10.628/2002

A SÚMULA 394 DO STF E A LEI N° 10.628/2002

A Súmula 394 do STF enunciava que "cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício".

Depois de vigorar por mais de 35 (trinta e cinco) anos, a sobredita Súmula foi cancelada, por unanimidade, em sessão plenária do STF, realizada em virtude do julgamento de uma Questão de Ordem suscitada no Inquérito 687-SP, iniciado em 30/04/1997, em que figurava como indiciado um ex-deputado federal.

Nossa Corte Suprema impingiu interpretação restritiva aos dispositivos constitucionais e, por via oblíqua, infraconstitucionais no que tange à competência por prerrogativa de função, entendendo que desta somente podem se beneficiar aqueles que se encontrarem desempenhando cargo ou mandato que lhe garanta o foro especial.

Durante o julgamento do STF, o Ministro Sidney Sanches advertiu que "a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo". Continuou o insigne magistrado esclarecendo que "as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos".

Restou sedimentado, então, no STF, que deixando o cargo definitivamente, seja qual for o motivo, seu ex-titular não terá direito a processo e julgamento em órgão jurisdicional distinto daquele que teria qualquer um do povo.

Ocorre que, não obstante o pacífico entendimento da Suprema Corte, no dia 24 de dezembro de 2002, véspera de natal, foi promulgada a Lei n° 10.628, que alterou o artigo 84 do Código de Processo Penal, dando nova redação ao caput e acrescendo-lhe dois parágrafos. Vejamos a novo dispositivo legal:

"Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§1°. A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§2°. A ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei n. 8.249, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou a autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no §1°."

Esse novo texto incorporado à legislação processual penal, trouxe novamente à discussão a hipótese de manutenção do foro especial por prerrogativa de função em caso de definitiva cessação do exercício funcional que o alicerçava, questão, frise-se, já pacificada pelo STF, como já estudado.

O caput do artigo 84 teve poucas alterações. Na verdade, ocorreu apenas o aperfeiçoamento da redação, substituindo-se a expressão "Tribunais de Apelação" por "Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal", e acrescendo-se o STJ no rol dos tribunais competentes para o processo e julgamento dos delitos sujeitos a foro especial por prerrogativa de função.

O §1°, ora inserido, contrariando entendimento do STF, conferiu foro especial aos agentes, mesmo após a cessação de sua função pública, em relação às condutas inerentes aos atos administrativos praticados quando da vigência do exercício funcional. Já o §2°, também novo, estendeu o foro por prerrogativa de função, também após o término do exercício da função pública, aos acusados de atos de improbidade administrativa – definidos na Lei n° 8.429/92 – por atos praticados durante sua gestão.

A inconstitucionalidade de tais dispositivos, face ao princípio da isonomia, consagrado no caput do art. 5° da CF/88, parece evidente. Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, referindo-se às novas regras quando ainda figuravam como Projeto de Lei n° 6.295/02, já advertia que "embora seja escandalosamente inconstitucional esse projeto foi estranhamente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, onde se supõe que haja conhecedores da Constituição". (40)

Salta aos olhos que o novo regramento deixa de proteger o cargo para, em afronta ao princípio constitucional da igualdade, beneficiar pessoas. Ora, se se trata de ex-funcionário, de ex-ocupante de cargo público, não é possível a manutenção do foro especial de prerrogativa de foro para estes, pois não estão mais investidos no cargo público e nem exercendo função pública relevante que justifique um tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos. Não há mais, no particular, o interesse público que legitima o foro especial, pois os ex-agentes públicos, ao cessar o exercício de sua função pública, voltam a ser cidadãos comuns e, por isso, devem ser submetidos a processo e julgamento sem privilégios, respeitando-se, assim, o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Corroborando esse posicionamento, Luiz Flávio Gomes assevera que "esse foro especial só tem sentido, portanto, enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo o sentido o foro funcional, que se transformaria (em caso contrário) em odioso privilégio pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito". (41)

Verifica-se, então, que o legislador não criou uma prerrogativa, mas sim um privilégio, que visa a beneficiar a pessoa do ex-ocupante do cargo público, e não o cargo em si. Nesse ínterim, não há, dentro do ordenamento jurídico pátrio, qualquer razoabilidade que justifique o privilégio em questão.

Quanto ao §2°, ora acrescentado, também padece de vício de inconstitucionalidade, pois o legislador, equivocadamente, por meio de lei infraconstitucional, ampliou o rol de competências originárias constitucionais do STF, do STJ, dos TRFs e, em alguns casos, dos TJs. Criou novas regras, portanto, à competência dos tribunais superiores, a qual é fixada através das normas previstas na Constituição Federal.

Percebe-se, destarte, que as alterações trazidas pela Lei 10.628/02 consubstanciam-se em "um duro golpe contra os princípios republicanos de igualdade; fomento à criminalidade política, à corrupção, e é sabido que muitos têm se valido de prerrogativas asseguradas pelas funções para delinqüir impunemente". (42)Ademais, "a Lei 10.628/02 contraria a Constituição Federal; todo e qualquer senso de Justiça; princípios constitucionais basilares; o interesse social, e não corresponde, em absoluto, com as idéias e ideais da sociedade brasileira contemporânea, representando, sem sobra de dúvidas, ranço primitivo e ditatorial". (43)

Por Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia
Curitiba - PR